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A Colaboração Premiada – Lei nº 12.850/2013.

A colaboração premiada é um negócio jurídico processual, celebrado por escrito, pelo qual o indivíduo, envolvido de alguma forma com os fatos delituosos (na condição de autor ou partícipe), voluntariamente auxilia ou colabora com os órgãos encarregados de apuração do fato (Polícia Judiciária ou Ministério Público), em qualquer fase da investigação ou do processo, fornecendo-lhes informações efetivas a respeito da infração penal, seus autores, vítimas ou dos objetos e produtos do crime para, em troca, receber prêmios como a redução de pena privativa de liberdade, seu cumprimento em regime prisional mais brando ou substituição por penas restritivas de direitos ou, até mesmo, o perdão judicial ou o não oferecimento da denúncia.

Em relação à sua natureza jurídica, a colaboração premiada é um negócio jurídico processual consubstanciado em meio de obtenção de prova (art. 3º-A da Lei 12.850/2013) e não prova propriamente dita. Tanto assim que a própria lei estabelece que nenhuma medida cautelar, decisão de recebimento da denúncia ou sentença do juiz poderá fundamentar-se exclusivamente nas declarações do agente colaborador (art. 4º, §16), não se dispensando, portanto, a necessidade de investigação/instrução processual para apurar os fatos que constituam objeto da delação:

Importante salientar que o acordo é firmado entre acusado (obrigatoriamente representado pelo seu Defensor) com o Delegado de Polícia (na fase de investigação) ou com o Ministério Público (em qualquer fase da investigação ou do processo), sendo vedada a participação do juiz nas negociações. Desse modo, o Poder Judiciário tem a função exclusiva de analisar única e exclusivamente a regularidade (atendimento aos requisitos formais), legalidade/adequação (observância dos critérios legais não apenas quanto ao atendimento das finalidades do acordo, mas também quanto às normas que disciplinam os benefícios concedidos pelo acordo) e voluntariedade (se não há vício do consentimento na celebração do acordo), conforme dispõem os parágrafos 6º e 7º do artigo 4º. Em suma, o papel do juiz, nesta fase, cinge-se à função homologatória ou não do acordo, podendo ainda ajustá-lo de acordo com o caso (cf. art. 4º, §8º).

Essa “postura equidistante” do juiz em relação às partes no processo penal informa o citado comando legal que prestigia o sistema acusatório. Se as declarações do colaborador são verdadeiras ou respaldadas por provas de corroboração, esse juízo será feito apenas “no momento do julgamento do processo”, no momento diferido, qual seja, na sentença, conforme previsto no § 11 do art. 4º da Lei 12.850/20138.

Para que produza efeitos, a colaboração do agente deve ser efetiva, de maneira a atingir um dos seguintes resultados, estabelecidos no art. 4º:

1) Permitir a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;

2) Revelar a estrutura hierárquica e a divisão de tarefas da organização criminosa;

3) Prevenir infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;

4) Recuperar total ou parcialmente o produto ou o proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;

5) Localizar eventual vítima com a sua integridade física preservada.

Caso se atinja qualquer um dos resultados acima apontados, o colaborador fará jus aos seguintes benefícios:

1) Redução de pena – art. 4º, caput e §5º – causa especial de redução de pena, a ser aplicada na terceira fase da dosimetria ou pelo juiz da execução. Se a colaboração se der no curso do processo a pena pode ser reduzida em até 2/3 (dois terços). Se, contudo, a colaboração se der após a sentença condenatória, a pena poderá ser reduzida no máximo até metade.

2) Progressão de regime prisional – art. 4º, §5º – modifica o regime prisional de cumprimento de pena, se o acordo for firmado após a sentença condenatória (inclusive após o seu trânsito em julgado).

3) Substituição de pena privativa por pena restritiva de direitos – art. 4º, caput – permite ao juiz substituir, em caso de condenação, a privação da liberdade por penas de restrição de direitos, estatuídas no Código Penal (art. 43 e seguintes).

4) Perdão judicial – art. 4º caput e §2º – trata-se de causa de extinção da punibilidade prevista no art. 107, inciso IX do Código Penal. Para que seja aplicado, o perdão depende de que a colaboração do agente seja relevante, nos termos do §2º.

5) Não oferecimento da denúncia – art. 4º, §4º – trata-se de exceção ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, pelo qual o Ministério Público, apesar de estar obrigado a oferecer a acusação, poderá deixar de instaurar processo criminal contra o agente colaborador. Sem dúvidas, é o maior benefício contido na lei9.

Ressalte-se que a escolha por qual dos benefícios será concedido depende de fatores como o grau e a eficácia da contribuição prestada, as condições pessoais do colaborador, além da natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso (art. 4º, §1º). Outra questão importante de ser tratada diz respeito ao momento em que o beneficiário do acordo poderá usufruir de seus “prêmios”. Segundo entendimento firmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, isso ocorrerá com cumprimento dos deveres constantes no termo de acordo10. Caso descumpra as condições e obrigações do acordo, o indivíduo perderá o direito aos benefícios ajustados.

Ultimamente, contudo, o Ministério Público Federal costuma incluir nos termos dos acordos de colaboração premiada a previsão de que, na hipótese de rescisão do negócio jurídico, o órgão acusatório poderá utilizar todos os documentos e meios de prova fornecidos pelo investigado/réu contra ele, medida que tem causado inúmeras discussões e ainda não pacificada. Outra situação polêmica e que, deverá ser resolvida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, diz respeito às chamadas cláusulas de renúncia, pelo qual o agente colaborador renuncia integralmente ao direito ao silêncio, bem como à possibilidade de impetração de habeas corpus e recursos contra as decisões ou sentença que se fundarem no acordo.

Após a fase de negociação e celebração, o acordo será formalizado por escrito e entregue à Justiça com um requerimento de homologação, distribuído sob sigilo (art. 7º da Lei 12.850/2013). Na proposta deverá ser especificado qual o benefício concedido ao autor, podendo o juiz, contudo, rejeitá-lo ou adequá-lo, circunstância que também provoca discussões a respeito das consequências, sobretudo se o magistrado não concordar com a homologação.

Parcela considerável da doutrina ainda insurge-se contra o instituto afirmando que, em muitos casos, a colaboração é precedida de medidas cautelares como a prisão preventiva, que acabam submetendo o indivíduo a uma nítida coação estatal, não lhe restando outra alternativa senão confessar os fatos e delatar seus comparsas. Veja-se a opinião de Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa:

A questão passa na utilização de trunfos para estimular a delação. A prisão espetacular gera o incentivo para delatar, tanto do segregado, como dos ainda soltos, no rastilho de delações que se verifica. Mas se é um negócio e, como tal, precisa ser livre de coação, parece um tanto estranho que a liberdade fique vinculada à delação. Delatou pela manhã, solto pela tarde. A mensagem aos demais é: antecipe sua delação e não seja preso. A prisão cautelar é completamente desvirtuada, para servir como instrumento de coação, qual seja: delate antes de ser preso e evite a prisão (e o espetáculo); ou, se já preso, delate logo para abreviar o sofrimento. Em última análise, o cerceamento da liberdade (ou risco real de) é uma poderosa moeda de troca a ser manipulada pelo acusador.

Não obstante a posição dos respeitáveis autores, a jurisprudência tem admitido as colaborações premiadas de investigados ou acusados presos cautelarmente, sob o argumento de que a análise dos requisitos da prisão, bem como sua decretação é algo que antecede a possibilidade de negociação com as autoridades.

Há ainda, uma corrente contrária aos rumos tomados pela colaboração premiada, no que diz respeito a ausência de regras que regulamentem o procedimento de negociação, a concessão de benefícios ou prêmios sem qualquer respaldo no princípio da legalidade, a impossibilidade de confrontação do depoimento do colaborador pelos co-investigados ou corréus, a seletividade e/ou direcionamento das investigações e ao arbítrio excessivo das autoridades persecutórias. Algumas dessas críticas tendem a minimizar com o advento da Lei 13.964/2019, que previu a nulidade de benefícios que não encontrem respaldo na lei, bem como das cláusulas de renúncia (art. 4º, §7º, incisos II, III e §7º-B).

Todas essas questões merecem profunda nossa profunda reflexão e seria inviável transcrevermos aqui todas as teses e argumentos pertinentes. Cabe a nós, juristas, em nosso processo de estudos e atuação prática contínua, buscarmos as melhores soluções para tais problemas.

Por fim, cumpre-nos averiguar outro instituto que, embora existente e que vinha sendo utilizado há alguns anos em algumas localidades, foi recém regulamentado no Código de Processo Penal (art. 28-A), com o advento da Lei Anticrime (Lei nº 13.964/2019).

Trata-se do acordo de não persecução penal que nada mais é que um acordo firmado entre indiciado e seu defensor com o Ministério Público, pelo qual esse deixa de processar o indivíduo (daí a origem do nome do instituto) que espontaneamente confessa a prática da infração penal e cumpre as obrigações fixadas em lei ou indicadas pelo Ministério Público.

Importante destacar que o acordo de não persecução penal, embora possua determinados requisitos para ser proposto, acaba sendo viável para a maior parte dos delitos que estudamos, ou seja, os crimes econômicos. Veja as condições que a lei prevê para concessão do benefício:

1) Fumus comissi delicti (indícios da prática do crime) – se não houver o mínimo de lastro indiciário, a hipótese será de arquivamento do inquérito e não de oferecimento do acordo. Assim, sua propositura somente é cabível se houver indícios mínimos da prática delituosa, evitando que o órgão ministerial possa abusar do direito oferecendo acordos para casos em que não houver substrato fático-probatório mínimo.

2) Confissão formal e circunstanciada por parte do indiciado – Só é cabível o acordo nas hipóteses em que o indiciado tenha confessado formal e “circunstancialmente” (embora o melhor termo fosse circunstanciadamente). A lei não exige que essa confissão seja feita perante o órgão policial ou em sede de investigação preliminar, motivo pelo qual entendemos que nada impede que o indivíduo, caso tenha interesse, possa efetuar a confissão ou ratificá-la em audiência no momento da celebração do acordo.,

3) Infração penal cometida sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, praticada de forma não habitual, reiterada ou profissional – a lei previu a possibilidade de concessão do benefício para uma extensa gama de infrações penais, ampliando sobremaneira o poder do Ministério Público. Isso porque a grande maioria das infrações penais são cometidas sem violência ou grave ameaça e possuem penas mínimas inferiores ao patamar estabelecido de quatro anos. Na prática, como dissemos anteriormente, quase todos os crimes econômicos podem se enquadrar nesse requisito, a menos que tais condutas sejam realizadas (e isso é comum de acontecer), de forma reiterada, habitual ou profissional (§2º). Outra ressalva no que diz respeito à natureza da infração está prevista no inciso IV do §2º, que estabelece ser incabível o acordo para o agressor nos crimes que envolvam violência doméstica ou familiar, ou cometido contra a mulher por razões de sexo feminino (§2º, inciso IV).

4) Não ser cabível transação penal (art. 76 da Lei nº 9.099/1995) – se a infração penal for de competência do Juizado Especial Criminal e comportar o cabimento de transação penal, não será oferecido o acordo de não persecução penal. Na prática os institutos poderiam se confundir e, a fim de evitar essa mistura, optou-se por delimitar suas hipóteses de cabimento.

5) Indiciado não reincidente e que não tenha sido beneficiado com acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo nos últimos 5 (cinco) anos – à semelhança do que ocorre com a transação penal, se o sujeito foi contemplado com quaisquer desses benefícios nos últimos 5 (cinco) anos, torna-se incabível o acordo.

O acordo deve ser homologado judicialmente em audiência própria, realizada com a presença do magistrado (que deverá verificar o atendimento a esses requisitos legais e a voluntariedade do indiciado ao firmá-lo), os autos são encaminhados ao juízo de execução penal para dar início ao cumprimento das condições (§6º) que podem envolver a reparação do dano (I), renúncia a bens e direitos que constituam instrumentos, produto ou proveito do crime (II), prestação de serviços à comunidade por período correspondente à pena mínima prevista para o delito, diminuído de um a dois terços (III), pagamento de prestação pecuniária em favor de entidades públicas ou beneficentes (IV) ou o cumprimento de outra(s) condição(ões) especificada(s) pelo Ministério Público na proposta, desde que compatível com a infração penal.

Uma vez cumpridas as condições pelo período estipulado, o juiz declarará a extinção da punibilidade do sujeito passivo. Caso descumpridas as obrigações, os autos devem ser novamente encaminhados ao Ministério Público para que possa dar andamento ao feito, seja complementando as investigações, seja oferecendo a denúncia contra o indivíduo.

Por fim, destaca-se que enquanto não for cumprido ou não houver rescisão do acordo, a prescrição não corre, ficando suspensa, de acordo com a nova redação do art. 116, inciso IV, do Código Penal.

REFERÊNCIAS BÁSICAS

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