Qual o bem jurídico protegido a partir da incriminação prevista no art. 28 da Lei nº 11.343/06?
A resposta a essa pergunta tem repercussão direta na defesa contra a referida incriminação.
Com efeito, a partir da noção moderna do conceito de crime, bem como tendo em vista o desenvolvimento e reconhecimento normativo da teoria do bem jurídico penal, não se admite mais a existência de um crime sem configuração do resultado normativo (lesão ou ameaça de violação ao bem jurídico tutelado pela norma penal).
Essa é, inclusive, a previsão da primeira figura do art. 13 do CP (o resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa).
O que seria, portanto, esse resultado?
A legislação não trata expressamente do que venha a ser o resultado relevante para o direito penal, mas, por inferência hermenêutica das regras de imputação previstas na parte geral do Código Penal, pode-se delas ser extraído o princípio da ofensividade. Menciona-se, para tanto, os dispositivos previstos no art. 14, II e o art. 17, ambos do CP.
Pelas aludidas regras penais de limitação do poder penal, o início da relevância penal na conduta humana só se dá quando o agente inicia a execução da conduta típica, mesmo que o resultado pretendido não seja alcançado (tentativa). Porém, não obstante a discussão a respeito da diferença entre o ato preparatório do ato executório, para fins de configuração da tentativa, o art.17 é definitivo e dá o contorno jurídico necessário para se entender pelo início da execução apenas daquelas condutas que tenha o condão de colocar, no mínimo, sob ameaça de lesão, o bem jurídico tutelado pela norma.
O raciocínio, em verdade, é por exclusão, porque, como se sabe, o aludido dispositivo trata do instituto do crime impossível no Direito Penal brasileiro. Isto é, se o agente iniciar a execução de uma conduta prevista no tipo penal, mas, por circunstâncias alheias à sua vontade, o resultado típico não ocorre, apenas poderá ser punido pela tentativa, se o meio utilizado para execução tenha (no plano objetivo) eficácia para o atingimento do bem jurídico protegido pela norma; ou, se pela constituição atual do objeto material da conduta (que corporifica o bem da vida protegido), é possível, também no plano objetivo, atingir-se a lesão ou perigo de lesão.
Da interpretação do dispositivo, pode-se concluir o seguinte: para fins de incidência penal, não interessam as condutas que, diante da situação fática, mesmo na tentativa (início da execução da conduta típica), não sejam possíveis de colocar em risco o bem jurídico tutelado pela norma penal, ainda que o agente tenha a vontade de causar o resultado tipicamente previsto.
Isso serve, sem qualquer dúvida, para os crimes de perigo e de lesão, porque, mesmo que num crime de perigo, se o resultado (ofensa ao bem jurídico ou perigo de ofensa) jamais puder ocorrer, o caso será resolvido pela aplicação da regra do art. 17 do CP (crime impossível).
Essas considerações são pertinentes para se perceber qual é a proteção que o tipo do art. 28 da Lei n.º 11.343/06 traz na norma que o subjaz.
Com efeito, o tipo prevê a conduta daquele que tem a droga para o consumo pessoal, estabelecendo penas, no preceito secundário, restritivas de direito, porém.
A doutrina, em sua maioria, explica que o objeto jurídico tutelado neste tipo é a Saúde Pública, entendida como a saúde individual de um número indeterminado de pessoas (NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 7. ed. São Paulo: RT, 2013. v. 1, p. 299).
Portanto, a pergunta que não encontra resposta é a seguinte: como a proibição do porte de drogas para o consumo pessoal afetaria ou teria vinculação causal de afetação ao bem jurídico que se alega proteger mediante a referida incriminação?
A partir do que se expôs, não há qualquer afetação ou relação lógica de causalidade entre a incriminação e a proteção. O que se diz, no máximo, seria uma atividade que fomentaria a distribuição, essa, por sua vez, de possível aferição da possibilidade de violação da saúde de um número indistinto de pessoas.
Porém, o que se percebe é que a proibição contida no art. 28 jamais atinge qualquer pessoa a não ser aquele mesmo que detém a droga para o seu consumo pessoal.
Não se pode aceitar que a legislação preveja uma proibição, incidindo sobre a liberdade de alguém, a pretexto de proteger bem jurídico de terceiro e por conduta criada por ele próprio. Sem que haja qualquer possibilidade de violação ao bem jurídico a partir da proibição criada, é ilegítima a intervenção penal, porque, nesse caso, o princípio da ofensividade seria claramente violado.
Logo, como a proibição figura-se como manifestamente ilegítima, porque, em hipótese alguma, poderá ser atingido o resultado (proteção à saúde pública), no caso, o que existe é, tão-só, a proibição do exercício do direito à liberdade sobre o corpo.
Sim, porque, quando o agente tem a droga para o seu consumo pessoal, é para que ele dela se utilize, o que poderia ser considerado, no máximo, uma autolesão decorrente dos efeitos da droga no organismo humano, fato que o direito penal não pode se preocupar por decorrência do princípio da ofensividade.
Ora, o Direito Penal não pode se utilizar uma pena para punir comportamentos que não ultrapassam a própria figura do agente. Ou seja, não pode se preocupar com condutas que não afetem (ou possam afetar) bem jurídicos de terceiros.
De conseguinte, a incriminação do art. 28 da lei acaba por gerar violação à liberdade individual, à vida privada e, consequentemente, à intimidade daqueles que desejam usar drogas, fundamentos esses que estão sendo discutidos no RE n.º 635.659, afetado ao plenário do Supremo Tribunal Federal, no qual se discute a constitucionalidade da incriminação.
Dessa forma, entende-se que a principal defesa contra as referidas imputações é argumentar que a incriminação não traz qualquer possibilidade de proteção ao bem jurídico que a doutrina (ainda) insiste em dizer que a norma pena tutela (saúde pública), sendo, porquanto, ilegítima a intervenção penal.